NEUTRALIDADE DA REDE: a votação nos EUA que pode afetar todo o funcionamento da internet no Brasil
- Maria Godoy
- 29 de dez. de 2018
- 5 min de leitura
Atualizado: 30 de dez. de 2018
Comece imaginando os provedores de internet como se fossem companhias de televisão a cabo. Os sites seriam os canais. Você deveria, então, escolher os seus favoritos e pagar especificamente para ter acesso a um "pacote" deles.

Na prática e de forma bem simplificada, esse é o cenário que se busca instituir nos Estados Unidos atualmente e que, mais à frente, poderia passar também a ser o panorama brasileiro. Deixaríamos de pagar para acessar a internet como um todo; passaríamos, então, a ter acesso a recortes dessa rede global.
Em linhas gerais, a neutralidade da rede significa igualdade na disponibilização do conteúdo na internet. Ou seja, veta-se aos provedores a discriminação online, de modo que eles são impedidos de realizar práticas como:
- Bloquear conteúdo legal, aplicações ou serviços;
- Reduzir a velocidade de certos tráfegos para que o conteúdo seja entregue aos usuários de forma mais lenta;
- Favorecer certos tráfegos ou priorizar conteúdo/serviço de suas próprias afiliadas.
Pensemos, por exemplo, em como seria a atuação das pequenas empresas e startups nesse cenário. Sua busca por visibilidade e inserção no mercado seria ainda mais árdua. No mundo virtual, elas teriam que competir com empresas cuja velocidade de tráfego é aumentada pelos provedores, mediante pagamento, através das chamadas "vias expressas" ("fast lanes").
MAS SE A VEDAÇÃO A ESSAS PRÁTICAS PARECE BENÉFICA, QUAIS OS ARGUMENTOS PARA AFASTAR A NEUTRALIDADE DA REDE?
A neutralidade na rede, como a concebemos hoje, passou a ser admitida no Estados Unidos em 2015, durante o governo Obama, através da categorização dos serviços prestados pelos provedores de internet como sendo de "utilidade pública", no mesmo patamar da telefonia e da eletricidade, por exemplo. Desde então, a "Comissão Federal de Comunicações" (Federal Communications Commission, FCC) é responsável por esses serviços.
Atualmente, a FCC é formada por 3 representantes do partido republicano (partidários de Trump e supostamente favoráveis ao afastamento da neutralidade) e 2 democratas - exatamente o oposto da configuração do órgão quando da aprovação das regras durante o governo Obama. Considerando, portanto, os interesses da maioria dos integrantes da comissão, já conseguimos conjecturar o resultado da votação que visa à supressão da neutralidade da rede, agendada para 14 de dezembro.
A discussão foi reavivada principalmente em razão da proposta visando "restaurar a liberdade na internet e eliminar as pesadas regulações da internet", apresentada pelo atual chefe da FCC, Ajit Pai.
Para ele, as regras ligadas à neutralidade seriam rígidas demais e impediriam novos investimentos e avanços no setor, uma vez que os provedores são impedidos de oferecer acordos e benefícios a determinadas empresas, de modo que o interesse destas em promover melhorias acaba sendo reduzido. Poderíamos falar aqui em uma questão de "estímulo".
Outro ponto que os defensores da derrubada da neutralidade nos Estados Unidos apontam é o fato de já existirem outras normas capazes de regular e punir casos de violação aos direitos das empresas e consumidores, como a lei antitruste do país. Assim, mesmo sem a neutralidade da rede, as autoridades continuariam hábeis a agir. Além disso, a própria pressão das mídias auxiliaria na boa atividade dos provedores. Em suma, os defensores são favoráveis a uma regulação pelo próprio mercado.
No mais, há quem diga que não existem evidências de que as companhias de fato bloqueariam ou reduziriam a velocidade de certos sites apenas por estarem diante da ausência da regra de neutralidade. Ao contrário, apontam que os indícios seriam no sentido de que elas manteriam o serviço normalmente:"Os provedores suportam massivos custos fixos, o que significa que eles são motivados a maximizar o número de usuários finais. Isso significa não cortar os sites e os apps que esses consumidores desejam".
Argumentam, em razão disso, que caberia ao consumidor insatisfeito, simplesmente, trocar de companhia (embora não seja demais lembrar que em algumas localidades o acesso é limitado a uma ou duas companhias, sem grande chance de escolha para a população).
Dessa forma, portanto, o governo deveria parar de "microgerenciar" a internet, conforme afirmou Pai, e deixar que o mercado se incumba de regular as eventuais falhas do sistema.
Logo, o que se passaria a exigir seria tão somente a "transparência" dos provedores para com os consumidores e autoridades, passando à "Comissão Federal do Comércio" ("Federal Trade Commission") o papel de vigilância da "imparcialidade" das atividades comerciais realizadas pelos provedores. Esse é o panorama atual nos Estados Unidos (clique AQUI para ver um mapa interativo da distribuição da proteção à neutralidade da rede pelo mundo).
Em outros locais, como na Europa, predominam as regras a favor da neutralidade, embora alguns países promovam atitudes que corroboram com a inexistência dessas regras. É o que ocorre, em certos casos, na Espanha e Portugal. Neste, por exemplo, a empresa Meo, conhecida por essas práticas, manifestou-se afirmando que "Com estes pacotes, está-se a dar aos clientes a hipótese de escolherem aquilo que querem. Mais do que beneficiar uma empresa ou serviço, é um reflexo das preferências dos clientes".
Ademais, esses países europeus não estão sozinhos. Na Nova Zelândia, empresas como a Vodafone (imagem abaixo) praticam abertamente a diferenciação de preço dependendo dos sites que se deseja acessar. Veja o seguinte exemplo, em que a companhia citada divide os pacotes de internet em "social", "chat", "música" e "vídeo":

Outro exemplo de como pode ser a divisão da internet em pacotes:

Diante dessa decomposição da internet em vários blocos de sites, um conceito que se destaca (e que aflora várias discussões e confusões) é o ""zero-rating", que basicamente se trata da não cobrança dos dados do usuário no tráfego em certos sites e aplicativos - seria a "tarifação zero".
Embora possa ser vedada pelo Marco Civil e sua regulamentação, tal prática já esteve presente no mercado brasileiro, observada inclusive no recente lançamento do "Correios Celular", em que o uso do Whats app para mensagens de texto, por exemplo, não é descontado da franquia de dados mensal do usuário.
Quando dizemos que tal conduta "possa ser vedada", quer-se dizer exatamente isto: que não é possível subsumi-la à ilegalidade sem analisar o caso concreto, se houve de fato violação à competitividade ou quebra da neutralidade, tal como defende Carlos Ragazzo, professor da FGV e ex-conselheiro e superintendente-geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em debate durante o 31º Seminário Internacional ABDTIC.
E COMO A VOTAÇÃO NORTE-AMERICANA PODE AFETAR A INTERNET NO BRASIL?
A neutralidade da rede é expressamente assegurada no Brasil pelo Marco Civil da Internet (Lei 12965/2014), regulamentado em 2016. Contudo, não é ilusório imaginar que as novas orientações norte-americanas possam repercutir sobre a legislação brasileira. O país é considerado referência quando o assunto é direito digital e tecnologias.
Antes mesmo da votação norte-americana, já se especula que as "operadoras no Brasil aguardam decisão dos Estados Unidos para tentar derrubar regra da neutralidade da rede". No mínimo, acredita-se que o tema poderá voltar a ser mais amplamente debatido no Brasil. De toda sorte, especialistas creem que após a votação, caso se concretize a previsão de um resultado afastando a neutralidade da rede nos USA, o Poder Judiciário será provocado a se manifestar sobre a questão.
Resta aguardar para saber se as gigantes da internet, como Facebook, Netflix, Amazon, Twitter e Google, que são contra o fim da neutralidade da rede, assim como grande parte dos usuários, serão ouvidos.
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