Assistindo ao filme O Show de Truman com os olhos do Direito Digital
- Maria Godoy
- 6 de jan. de 2019
- 4 min de leitura
Já aviso logo: contém spoilers! Mas é por uma boa causa! Hoje vamos falar de #direito e #tecnologia com base no filme O Show de Truman.
Vamos começar com uma sinopse, que retirei do site do @adorocinema:
Truman Burbank (Jim Carrey) é um pacato vendedor de seguros que leva um vida simples com sua esposa Meryl Burbank (Laura Linney). Porém algumas coisas ao seu redor fazem com que ele passe a estranhar sua cidade, seus supostos amigos e até sua mulher. Após conhecer a misteriosa Lauren (Natascha McElhone), ele fica intrigado e acaba descobrindo que toda sua vida foi monitorada por câmeras e transmitida em rede nacional.
Pessoalmente, achei o filme sensacional, entrou para a minha (longa) lista de favoritos, sem dúvida! Agora vamos ao que importa: como o Direito, hoje, se relaciona com a história narrada.
Tal qual mencionado na sinopse, Truman acaba descobrindo que toda a sua vida era, na verdade, um reality show que começou com o seu nascimento, quando foi adotado por uma grande emissora de televisão (sim, pessoa jurídica, outro aspecto que o Direito poderia ser incitado, não?!). Com isso, foi construída uma cidade completa em um set de filmagens, com atores em todos os papéis possíveis, como seus pais, amigos e esposa.
Quando assistimos ao filme com os olhos do Direito Digital, nos deparamos com dois temas centrais que nos são frequentemente postos na atualidade: as liberdades individuais e as cidades inteligentes. Ambos trazem questionamentos jurídicos que, na prática, ainda vão sendo colocados à prova.
Contudo, antes de adentrar à análise desses dois pontos, quem do Direito não leu o livro VII de A República, de Platão, sobre o #mitodacaverna ? Pois é. Guardadas as particularidades, isso poderia ser uma analogia moderna do mito, no qual tudo o que Truman vê parece (e é tido por ele como) real, pois tudo “faz sentido”, embora de fato não passe de uma mera projeção da realidade.
Com relação às liberdades individuais, a história do filme traz dilemas bem claros. O conflito central nesse ponto se dá entre as perspectivas de privacidade e de monitoramento. Em que medida a vigilância sobre a vida privada em espaços públicos merece ser respaldada? Quais os limites da exposição do indivíduo? Quais as condutas legais (ou mesmo éticas) dos "espectadores" da vida privada alheia?
Câmeras de segurança, traçabilidade do indivíduo, publicidade por “pessoas reais”, acesso instantâneo a imagens. Tudo isso já se encontra fortemente presente no nosso dia a dia. Como indica Gilles Lipovetsky, vivemos em uma “sociedade das telas”.

A imagem acima é muito semelhante ao que vemos diariamente em redes sociais, em que as pessoas mostram cenas triviais de seus dias. Nesse ponto, vale trazer um aspecto jurídico muito recente, qual seja, um eventual direito à "extimidade".
Esse "novo direito", se é que já podemos considerá-lo assim, diz respeito à conduta de tornar pública a sua intimidade, de forma voluntária. Há quem entenda como sendo um dos vieses do direito fundamental à intimidade, o qual pode ser entendido, de forma vulgar, como o direito à mostrar ou não mostrar o que se quer que seja de conhecimento público.

Com respaldo no direito à intimidade, assim como na liberdade de expressão, portanto, as pessoas passam se deparar com esse novo conceito, chamado de extimidade, pois traduziria o direito à externalização de sua intimidade, a ser validada pela sociedade que lhe "assiste".
O aspecto do filme que vai de encontro ao exercício do direito da extimidade, no caso de Truman, seria o fato de que ele, sendo aquele que tem a sua intimidade revelada, não tem ímpeto em fazê-lo, sequer ciência disso.
Logo, há evidente violação à sua liberdade e privacidade - aliás, a própria liberdade de locomoção do protagonista é maculada durante suas tentativas de sair da "cidade" em que morava, quando os produtores o impedem até mesmo com a "criação de tempestades". E isso nos leva ao outro aspecto que une questões jurídicas, tecnologia e, claro, o filme.
Trata-se da ideia por trás das chamadas cidades inteligentes (ou smart cities). No reality show em que Truman vivia, o movimento do oceano, do vento, o amanhecer e o anoitecer eram controlados, podendo ocorrer quando desejado pela “direção” do programa. Sim, dia e noite eram simulados quando se bem entendesse. Até que ponto o Estado, no caso das nossas cidades inteligentes, estaria autorizado a controlar aspectos como esses, por razões de interesse público, por exemplo?

Por mais que no caso de Truman seja ficção, em nossa realidade não estamos tão longe disso. A tecnologia para tal já existe e, em certa escala, vem sendo aplicada, como ocorre na cidade de Songdo, na Coréia do Sul.
Além de ter controle climático em suas construções, ela foi toda construída nos moldes de um projeto pré definido (tal como ocorreu com o estúdio do reality show do filme). Na imagem acima, é possível ver a central responsável por "sugar" parte do lixo produzido diretamente das residências, encaminhando-os à reciclagem, razão pela qual sequer existem caminhões de coleta na cidade.
A cidade coreana, intitulada por muitos como a mais inteligente dentre as smart cities, possui, ainda, um sistema de vigilância por câmeras 24 horas. Ela se enquadra, assim, na ideia de "U-city", cuja inicial se refere à palavra em inglês "ubiquitous", ou seja, onipresente.
O livro que me inspirou a assistir ao filme ora analisado menciona a cidade do Rio de Janeiro como um exemplo de smart city emergente. Ele cita a conectividade do centro de operações da prefeitura (imagem abaixo, retirada de reportagem de O Globo), que acompanha o funcionamento geral da cidade 24 horas, todos os dias.

Em suma, diante dessa crescente busca por cidades inteligentes, como sinônimo de eficiência e qualidade de vida, é preciso averiguar os limites da ingerência estatal. Chamo atenção, portanto, ao fato de que nem tudo são flores quando pensamos em smart cities. É necessário sopesar a qualidade de vida trazida pelas medidas com as mitigações a direitos fundamentais, da mesma forma, trazidas por elas.
Seja pelo monitoramento no âmbito das cidades inteligentes, seja pelo direito à extimidade (exteriorização da intimidade, se assim pretendido), fato é que atualmente os indivíduos estão sob constante supervisão de terceiros, que muitas vezes sequer são conhecidos - se levarmos em consideração esses termos, o cenário real de hoje não se difere muito daquele retratado no filme.
Arrisco dizer que a geração atual esteja sendo vítima de um show de Truman - cuja exposição ao monitoramento alheio e à própria exposição de suas vidas em redes sociais, sem a necessária capacidade de discernimento para tal, são tão comuns logo na infância quanto era jogar bola na rua décadas atrás.
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